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A Ruptura

Uma História de Amor para Sementes Estelares

            Num Reino distante eles nasceram, e foram criados por aqueles ao seu redor que lhes diziam sobre os segredos, as maravilhas e as obrigações de serem quem eram.

            Ao chegarem à idade fértil, chamou-lhes o Rei e disse:

            – Ide e fazei conforme o ensinado. Comportem-se sem jamais trair a unidade que se forma a partir de suas forças e em meio às adversidades, lembrai de quem verdadeiramente são, apoiando-se mutuamente e quando um cair, seja o outro a levantá-lo. Hão de se espantar com o vosso poder, e quando indagarem de onde ele vem, dizei:

“- Eis que não o sei, só o sinto, e que este sentir perpassa a nós como num dínamo, quanto mais afinados estejamos.”

E abençoando-os, deixou-os partir.

            Durante a primeira parte da caminhada, as palavras do Rei ecoavam-lhes na mente:

“Vois sois Força! Vós sois Beleza!”

E eles por vezes se olhavam e trocavam sorrisos cúmplices, rejubilados por serem quem eram.

            Chegaram pois a uma estalagem e nela havia barulho, muitos cheiros e diferentes atividades. Das mais nobres às mais mesquinhas eram negociadas às mesas, nos cantos e nos balcões. Ao verem os recém-chegados logo os negociantes foram-lhe ofertar seus negócios, porém eles recusaram, a todos, horrorizados.

“Como havia de terem já se esquecido do que o Rei decerto também lhes dissera, assim que partiram do Reino?” Era um mistério, mas agora cabia-lhes ali sobreviver, descansar e comer, portanto embora ressabiados foram tratar de negociar daquilo que mais lhe fazia precisão naquele momento.

            À noite em seu quarto assustados abraçaram-se. A estalagem era por certo assustadora, mas eles podiam ao menos ver nos olhos um do outro ainda o reflexo da vida que tinham no Reino.

            Pela manhã ele foi informado de que deveria ir com os outros caçar para conseguirem alimento, e ela foi deixada só na companhia das outras que também começavam a ditar-lhe as regras que melhor garantiam a sobrevivência de todos.

            “Eles saem e nos trazem coisas de que precisamos; nós cuidamos dessas coisas, as limpamos e preparamos – é uma troca justa, é assim que tem sido.”

            E ela limpou e preparou o que eles trouxeram ao final do dia.

            Quando o vento aumentou, ele lhe disse:

“- Preciso partir por dias, pois que me falaram que a caça ficará escassa e preciso garantir alimentos junto com eles para nós dois.”

Ela não queria que ele partisse e indagou se não haveria outra forma, outro jeito de sobreviverem sem que ele precisasse partir. Ele lhe respondeu:

            “- Chegamos à pouco, eu e tu; eles que já estão aqui há tempos devem de saber mais. É melhor se adaptar do que morrer à mingua. Além do que jurei perante ao Rei não permitir que nada jamais te faltaria.”

            Ela entristece e sentiu culpa pela primeira vez. Se ele se ia era também por causa dela. Se não a tivesse como fardo extra, talvez por si não precisasse partir. A estalagem a cada dia perdia mais graça e nas vozes das mulheres não encontrava consolo e sim augúrios pouco gentis.

            – Não lhe sintas a falta, pois que ele com certeza não sente a tua.

            – Por que não sentiria, se nele penso, por que ele também não pensaria em mim?

            – És jovem e ingênua – ria-se a velha – logo saberás como são os homens… O teu querido a essas horas estará a descansar a cabeça no colo de outra.

            – Quem é esta outra, e por que dela ele precisaria, se já tem a mim?

            – Ah, tola! Qualquer uma, a que bastar para o momento. Os homens nos usam, assim nós também usamos a eles.

            – Eu não quero usar a um homem! – protestou.

            – Se assim é, quem te trará alimentos e garantirá tua segurança? Com teus vestidos e mãos suaves mal conseguirias segurar a cabeça de um veado, quanto mais passar-lhes a faca ao pescoço!

            – Mas não me apetece matar veados, nem preciso de comer tanto! Não será mais prudente irmos procurar lugar melhor para morar, onde homem algum necessite manter-me em segurança?

            – Menina, se te vais, irás descobrir que todos os lugares são iguais a este daqui. Nessa taberna já tens conhecidos ao menos; aproveita e aprende logo como as coisas são, assim nem sofrimento nem surpresa te pegarão desprevenida.

            E meses se passaram, com os velhos que já não mais caçavam veados e javalis, cercando as moças e procurando fazer delas presas para praticarem uma força que não mais tinham certeza de possuir. Por vezes também lhe agrediam, com gestos, punhos e palavras, e ela em algumas luas foi deixando de sorrir. Mas aprendera a cerzir couro e preparar intestinos muito bem para uma refeição, e quando ele voltasse se orgulharia das roupas, comidas e cuidados que ela lhe prepararia.

            Quando ele voltou, estava diferente. Com traços mais duros e músculos mais salientes. Em seu primeiro abraço, ela já o notou, mais seguro de si, porém bem menos segundos aquele abraço durou.

            Ela perguntava-lhe sobre a caçada e ele pouco dizia. Em seu banho, certa vez pegou-o desprevenido, relaxado e tornou a perguntar como fora tudo. Ele lhe respondeu: “Melhor não saberes”, e desviou-lhe o olhar.

            Lembrou-se das palavras das mulheres todas, sobre como os homens procuram outros colos, qualquer colo, quando lhes apetece se deitarem. E ela concluiu que o seu a ele, não despertava mais nenhum suspirar.

            Da banheira ele lembrava das tristes caçadas que fizera, e da coragem que faltara para fugir quando descobrira que seus companheiros caçavam não somente animais, mas também homens, e saqueavam e matavam em nome do que alegavam ser para sua própria segurança.

            Na noite em que vira um deles a outra mulher oprimir, quis ir-se embora, mas o indagaram:

“- Se não estás do nosso lado, quem será por ti? E ela que está na estalagem junto das nossas? Que será dela? A tirarás de lá, de todo conforto e da vida ao qual já está acostumada? És um egoísta, só em ti pensas, não és bom homem, nem bom amigo. Pensando bem, nem para caçar tu serves, só mesmo para carregar o que já foi abatido!”.

            Ele envergonhou-se, muito mais por não conseguir nada dizer que fizesse algum sentido. Ele não deveria precisar nada dizer, gritava-lhe o seu íntimo.

 “Eles deveriam saber. Eles deveriam saber…. Como se esqueceram de tudo que o Rei disse – ou será que para eles dissera algo diferente? Se dissera e eles esqueceram, então acabaria ele se esquecendo também?”

Era preciso protegê-la de toda essa insanidade. Mesmo que ele tivesse que fazer mais, que se abster mais de ser quem verdadeiramente era. Valeria a pena desde que ela, ao menos, estivesse bem. De todas as promessas que fizera ao Rei, essa era a mais importante. Mas, esses homens não pareciam lembrar-se mais disso – pensou recordando da mulher cujos gritos chegaram aos seus ouvidos. Talvez para protegerem as suas, que ficaram na taverna, sacrificam a estas que encontram pelas ruas.

            Ele quis chorar, e não sabia ao certo se era mais por si, pelas injustiças que via diariamente, por todas as vítimas que faziam pelo caminho ou se somente por ela, pelas saudades que sentia do seu colo, no meio da floresta, tarde da noite. Um dos poucos membros da caçada que lhe era menos hostil naquela hora ali passou e avistando-o, zombou:

            – Eu conheço essa cara de novilho recém-parido. Cresce e esquece, rapaz, pois que o amor das mulheres é somente ilusão.

            – Lamento que penses assim; deves ter tido uma experiência difícil… mas sei que ela me ama, e a essa hora deve sentir também minha falta.

            – Hahahahah, esses jovens são todos iguais – balançou o homem a cabeça, cuspindo para o lado. Quando descobrires que às mulheres só lhes importa ter do bom e do melhor, saberás o tolo que foste e te arrependerá do tempo perdido que dedicaste a ela.

            – Ela não se importa com objetos ou luxo, nem queria que para cá eu viesse, preferia mil vezes que ficasse com ela.

            – Ah, é mesmo? No começo todas dizem isso, até o dia em que de fato estamos tão cansados que comentamos por alto que gostaríamos de mudar; então ouvirás pela primeira vez o grito de uma gralha ensandecida e estourar-te os tímpanos: “De que viveremos nós!? Só pensas mesmo em ti, seu egoísta! Cá me mato e tu não podes ir nem mesmo vez por outra a uma caçada para garantir que possamos continuar a viver aqui. A taverna não é perfeita, mas pelo menos nos mantém a todos em segurança.” É isto o que todas falam.

            – Ela não é assim… Sua fala é doce e seus ouvidos consideram com carinho e respeito o que eu lhe falo.

            O homem se riu novamente:

            – Logo se vê que esta é tua primeira caçada longa… Vais me dar razão em breve, quando voltares ao lar e vires que tua cotovia há se transformado em corvo. É sempre assim, elas se acostumam àquilo que lhes damos, seja muito ou seja pouco, e quando o tiramos, fazem um escarcéu, acusam-nos de pouco amor e baixa consideração. Verás que já não se arrumará para ti e se irritará de tudo quanto a cobrares.

Ele achou absurdas todas as previsões do homem amargurado, e preferiu se abster de comentar que ela sempre fora vaidosa por si, e não porque ele alguma vez lhe pedira, mas de que adiantaria argumentar com outra solitária alma?

Mas agora de volta à casa, no precário quarto que usavam na taverna e que lhes servia de lar, ele percebia que suas roupas não eram as mesmas, nem ela arrumava os cabelos com o mesmo apreço, e quando ele comentou sobre os enfeites que agora lhe faziam falta, ela pela primeira vez aumentou a voz e lhe interrogou se às caçadas se ia com roupa de baile e se a ela ele via como um cabide, ou a alma que o corpo escondia; se as caçadas o haviam embrutecido ao ponto de lhe importar mais sua aparência do que tudo o mais que tinham em comum…

Ele não entendeu o ataque, assim como ela noutro dia também não entendeu o que dele recebeu. E ataques foram se sucedendo enquanto um tentava ora manipular e ora proteger a pessoa que antes nada precisaria fazer para ser amada e compreendida.

Anos passaram e muitos compromissos a mais vieram, consumindo ambos em suas tarefas, questões e responsabilidades, que ora eram compartilhadas, e outras eram ocultadas.

Ele aprendeu a buscar em outras virgens a magia que um dia dela se nutria; e ela se fechou ao afeto, pois que para nenhum homem jamais outra vez se entregaria. Levavam a vida juntos, mas por dentro completamente separados. Ambos sentiram-se traídos, sozinhos em terra distante, mas na data certa retornaram ao Reino do qual há muito tempo atrás haviam partido.

Breve tempo após o retorno, já o lar lhes fazia voltar a pensar como dantes. Ele pensava em como fora fraco, se deixando levar pelo que achavam os amigos. Antes deveria ter dela se acercado logo no início da primeira caçada e contado a verdade, falado sobre os comportamentos subvertidos do grupo, perguntado a ela se haveria outra coisa que se fazer, além de caçar e lavar cousas eternamente na mesma taverna, sem ter sequer pessoas sãs entre as amizades com as quais podiam contar.

Agora ele pensava que lá eram todos loucos, e antes ele e ela tivessem vivido a dois e a sós, o mais longe possível da multidão insana que lhes convidava a todo momento: “Juntem-se a nós!”

Mas de que valia juntar-se aos mancos de sentimento e aos críticos do amar? Antes tivessem buscado uma vida alternativa, talvez junto de outras pessoas que como eles, também perceberam que a taverna era um lugar perturbado demais para se habitar. E quanto mais pensava, mais decidia:

“Da próxima vez, farei diferente. Vou procurá-la assim que a vir e faremos novos planos. Quando o Rei nos mandar de volta à taverna, dessa vez saberemos mais como nos proteger da loucura geral e nos manteremos fiéis a nosso voto ancestral, de sempre nos priorizarmos perante as dificuldades da vida e juntos perseverarmos fazendo o melhor até o final!”

Ela demorou um pouco mais que ele a se apresentar, e quando o Rei a chamou, ele quase não a reconheceu por conta do brilho diferente do olhar. Por um momento pensou que ela devia também ter se dado conta de quão tolos ambos haviam sido por ouvirem aos outros e não fazerem como traziam claro as regras eternas dentro de si. Mas quando o Rei a ela perguntou como seria sua próxima ida a taverna, ela em bom tom respondeu:

– Se me fazes ir, meu Rei, prefiro ir-me só.

– Por que, minha filha, não queres a companhia de teu par?

Ela não lhe olhou, nem mesmo de soslaio, para responder ao Rei:

– Nesta terra para onde nos mandaste, as tuas leis foram deturpadas e esquecidas e os homens vivem a burlar todo tipo de regra que daria às mulheres, aos mais frágeis e aos sensíveis a mínima segurança e uma aproximada valia. Lá há os que vivem subjugados e os que apoiam o jugo para não serem eles os próximos a estarem na mesma situação. Mesmos os bons são compelidos a colaborarem com a perversão, e se por si não o fazem, decerto por um ente querido o farão. Prefiro não ir-me mais à taverna, ó meu Rei, mas se me fazes ir, dá-me pelo menos o direito de não viver com meu par num cenário tão desigual, onde nem eu nem eles conseguimos agir como nos foi ensinado por Ti.

O Rei voltou-se então para ele:

– E tu, que achas dessa decisão? E que resolves fazer tu?

– Deixa-me ir e ficar à margem… De longe observarei e se puder a ajudarei, para que lá não esteja de todo só.

E assim foi feita a vontade de ambos, e viveu ela só, e se entristeceu; e viveu ele com várias outras, e também com todas elas se entristeceu; e vez por outra se viam, e por segundos se reconheciam, mas a memória dos anos foi apagando todo e qualquer registro que tinham de si.

Muitos mais anos depois ao seu Reino retornaram e ao Rei novamente se apresentaram.

– Senhor, meu Rei – disse ele – sinto que vivi muitas vidas em uma e tive várias experiências mas nunca meu coração mais se encantou. Desejo tentar novamente com meu par, creio que dessa vez possamos fazer diferente.

– Como da primeira vez? – o Rei lhe indagou

– Sim, como da primeira vez – ele respondeu um tanto encabulado – mas agora saberemos ainda melhor como evitar as ciladas.

– E tu, que dizes disso? – questionou o Rei a ela.

– Eu de longe observei não somente o meu antigo par, como todos os homens daquela terra e todos agem igual. Querem sempre uma nova chance, mas têm os sentidos viciados e na primeira frustração buscam o conforto em qualquer lugar onde haja menor tensão. Não desejo voltar mais lá, mas se me mandas, peço que me permitas fazer algo diferente, em companhia de outros seres a quem eu possa amar sem me machucar, como as crianças ou os animais.

E assim ela dessa vez ficou conhecida como a mulher da floresta, que criava sozinha coisas vivas abandonadas e conhecia muitos remédios que curavam muitas gentes. Algumas vezes ele mesmo na cabana lhe procurou, com doenças diversas que ela tratou. Buscava sua amizade, e talvez um pouco mais, mas ela com ele logo dali corria, assim que meio curado já pudesse se pôr a caminhos por onde quisesse andar, desde que bem mais longe dali, bem mais longe dela e do seu olhar. Ele ressentido ia, e anos depois voltava, pedindo ajuda para filhos, mulheres e esposas, suas e de outros mortais, pois que nela confiava, e dela ajudou a fazer a fama, embora a ‘mulher que cura’ nunca lhe olhasse longamente nos olhos, nem muita conversa lhe fiasse, que não fosse das ervas, dos unguentos e do que ele precisasse mais para o alívio do momento.

Tempo cessou e retornaram mais uma vez ao Reino e dessa vez o Rei chamou aos dois:

– Vide, já são três vezes que vos mando e não conseguem trabalhar juntos para ofertarem ao mundo aquilo que lhes confiei. Como vai ser dessa vez?

Ele olhou para ela, ferido e falou primeiro:

– Eu sei que a magoei da primeira vez…

– E da segunda também – ela lhe interrompeu.

– …mas eu tenho tentado me redimir, mesmo sem receber nenhuma chance…

– Uma vez basta para eu aprender. Não deu certo da primeira vez, não é agora que irá dar. Por que o senhor, nosso Rei, não nos separa de vez e nos junta com um outro par para que possamos tentar sem que o passado que não deu certo esteja a nos atormentar?

E o Rei assim fez, mandando-os com outras pessoas, que haviam se decepcionado com seus pares anteriores também, para que rearranjados agora, tentassem colaborar. Antes de irem ele fez uma última pergunta ao Rei:

– Ela nunca irá me perdoar só porque tentei amar outras mulheres?

– Ainda não aprendeste a dor de ser preterido, de não se sentir suficiente para quem mais queremos tudo ofertar, mas dessa vez irei providenciar para que compreendas bem.

E ele foi traído inúmeras vezes, sempre por mulheres que lhe lembravam dela, mas que não o faziam sentir-se nem de longe da mesma forma que somente sentira quando com ela harmonizado estava.

Ela também dessa vez aceitou outro alguém, e era uma boa pessoa, tão ferido quanto ela mesma fora, mas tal como ela não queria abrir-se e por mais que ela o estimulasse, o novo companheiro procurava afazeres, se trancava em seus hobbies e somente da casa e dos filhos conversavam. Ela tinha um bom marido, mas se sentia incrivelmente só.

Certa tarde na praça que ambos levavam os filhos, Ele e Ela sentaram-se como estranhos, sem um do outro lembrar, lado lado, no banco próximo ao coreto. Boa tarde era imprescindível no quesito da educação e ele sentiu como se talvez a conhecesse e encetou puxar conversa:

– Está uma bela tarde!

Ao que ela não responde.

– Não acha? – insistiu.

– Deve ser – respondeu entre dentes, indisposta com o estranho insistente.

– Quantos filhos a senhora tem?

– Dois –  ela respondeu sem olhar para ele.

– Eu tenho quatro… três esposas diferentes….dois são gêmeos.

“Nada mudou” a mente dela rapidamente pensou, embora ela não soubesse porque, uma vez que não o conhecia.

Como ela nada dissesse, insistiu:

– Os seus dois filhos são do mesmo marido?

Ela o olhou espantada com a ousadia, mas viu nos olhos dele um brilho infantil, de quem achava normal frutos brotarem de relacionamentos pontuais. Respondeu incomodada com sua presença, embora ele fosse mais do que simpático e jovial:

– Um marido basta pra uma vida inteira.

– Que bom que a senhora acertou de primeira! Eu já não dei sorte. Caso, caso e sempre levo um par de chifre na testa!

– Você também não retribui os chifres? – jogou ao ar como quem desconfiasse do ar de santo dele.

– Olha, sinceramente, devo ter feito muita besteira numa vida passada, porque nessa só pastei mesmo! Nunca trai! Meu coração não dá pra essas coisas, sabe? A pessoa fica ferida de morte, pode até se fechar de vez para amar. Eu to quase assim, querendo fechar para balanço.

– Acho melhor. – ela disse de supetão.

– A senhora acha melhor? Como assim? Eu não me relacionar mais?

Pega de surpresa ela não soube o que dizer. Ficou um silêncio estranho no ar. Então ela conseguir articular seu pensamento:

– Essa coisa de Amor, não é aqui pra Terra, não… Aqui a gente casa por karma, pra ter filho, família. Essa coisa de amor deve ter só em mundos melhores, pra quem é espírito evoluído. Chega uma hora a gente cansa… Por isso que eu digo, é melhor não ter ilusão.

– Eu não consigo viver sem amar…

– Mas dá pra amar os filhos, os animais, a natureza de Deus que é maravilhosa…

– A Senhora sabe que não é a mesma coisa, né?

– Por que não? Pode ser até muito melhor, mais ‘sublime’.

–  Se fosse mais sublime, a gente não precisava acasalar pra ter um filho, bastava plantar uma muda de samambaia num vaso e rezar! Ah, me desculpe, mas o amor de um casal é a coisa mais divina que Deus fez, pena que as pessoas não sabem mais amar.

– E será que algum dia souberam? Veja as histórias de antigamente, sempre os homens com várias mulheres, verdadeiras escravas de haréns, sem direito a opinião, a sequer ter seus próprios bens, a estudar, a nada! O mundo foi muito injusto com as mulheres. E mesmo hoje em dia, uma mulher emancipada é vista como prostituta! Se a gente baixar a guarda, nos escravizam com corrente e tudo. Me desculpe o senhor, mas quem ama seu agressor sofre de síndrome de Estocolmo. Já está estudado isso…

– Eu sinto muito. Sinto muito que as coisas tenham sido assim. Sinto muito pelas minhas filhas e pela minha irmã, e por todas as outras mulheres enfim, que tem que enfrentar ainda um mundo hostil. Mas eu acho que só o amor pode curar tanta dor. Se a gente não se abrir pra ele, fica todo mundo no empate técnico, não dá jogo, sabe.

– Eu não vejo futebol.

Ele olhou pra ela condoído. De alguma forma estranha ele sentia muito profundamente a dor dela, e queria poder fazer alguma coisa para ajudar.

– Deixa eu fazer o seguinte…

 Ele levantou-se e ergueu a mão direita ao céu e depois ao peito e decretou:

– Eu, Julio Pinheiro, representante da espécie masculina, juro aqui solenemente nesta tarde de quinta-feira, que declaro válida a dívida que nós homens temos com a senhora…  (qual seu nome mesmo?)

– Sarita,

_ … com a senhora Sarita e com todas as mulheres que passaram por maus momentos e injustiças por conta de nossas ações egoístas e de nossos antepassados cruéis e insensatos e declaro que daqui por diante o Universo tratará de enviar somente bons homens no seu caminho e de todas as moças que estiverem dispostas a viver um amor verdadeiro sem mágoas nem ressentimentos. Em nome do meu cromossomo Y eu declaro, que assim está feito.

Ela olhou para ele como se tivesse visto um unicórnio no meio da praça. Estava incerta se ele era um don juan criativo ou uma pessoa avariada pelos percalços da vida. Ou ambos…. Mas riu. Levou alguns segundos de atraso enquanto ele de pé aguardava pelo efeito de seu juramento solene, mas por fim ela riu, e ele não perdeu seu ato.

Satisfeito, ele arriscou:

– E a senhora agora, bem podia jurar por nós, homens bem intencionados, que encontremos mulheres dispostas a bem amar, em nome do seu cromossomo X, que tal? Não lhe parece justo?

Ela balançou a cabeça em descrédito, mas não pode evitar um sorriso que reconhecia como tão seu, mas que por algum motivo do qual não se lembrava mais, milênios fazia que não era mais capaz de sorrir assim.

Ela não jurou, mas conversaram mais uns quinze minutos e depois voltaram para suas casas, cada um com seus respectivos filhos.

Vez por outra se encontravam em filas de mercado, loja de roupas infantis e atividades escolares. Ela aprendeu sobre os hábitos da família dele quando imigraram para a cidade, e quando soube do câncer de sua mãe, lhe ofereceu seus preparados de erva. Ele ficou muito grato e passou a indicar clientes para ela. Foi ele quem ela chamou quando o marido passou mal para levá-lo até o hospital. E enquanto este convalescia do derrame, era ele que arrumava tudo que ela precisava em casa, de eletricidade a encanamento, de dicas de veterinário até uma porta para o cachorro não atravessar a escada. Quando o marido morreu, ele foi com ela providenciar o funeral, e quando a filha dele fugiu de casa, ela ajudou a preparar os panfletos e ia todos os dias durante três semanas na casa dele para prepararem o quarto depois que a menina voltou para que pudesse ir morar com o pai como queria.

Eles sabiam muito um sobre o outro. Ela era mau-humorada, mas ele ria disso e não a levava a sério tanto quanto outros levariam. Ele era distraído e um pouco ingênuo, mas era prestimoso e muito esperto para criar soluções inovativas.

Ele dizia sempre que era carente, mas ela desconversava. Ela afirmava que era sozinha; e ele dizia que era assim só porque ela queria.

Se ela brigava com ele, ele mandava-lhe vídeos de animais no celular.

Se ele se zangava de verdade com suas grosserias, que para ela nada mais eram do que sinais de sua ‘sinceridade’ ao falar, logo lhe preparava uma comida especial e ia pessoalmente com ele cear.

Passaram-se assim alguns anos, na amizade, o chão sólido a lhes sustentar.

Nas agruras da vida, a presença fiel, perene e eficaz, que aceita pensar por ti quando mal podes de pé te sustentar.

Numa tarde muito igual à do banco da praça no dia em que se conheceram, estavam ambos à soleira da porta da casa alugada na praia, onde levaram os filhos que ainda estavam com eles para veranear junto com uma irmã dela e uma amiga em comum dos dois. Era a primeira vez que ficavam os dois ali a sós. Os adolescentes avisaram que demorariam a voltar. Ficaram os dois a ver o sol se pôr do lado oposto do mar.

Ele quis lhe perguntar sobre alguma coisa, mas não lhe vinha a mente com muita clareza e ela também não quis perturbar a beleza perfeita daquele momento.

– Eu te amo, você sabe.

Ele falou sem desviar os olhos do pôr do sol.

Ela ia dizer “sei”, mas alguma coisa quebrou dentro do seu peito, como se milhões de cacos de vidro, finalmente tivessem se partido de uma redoma que mantinha seu coração batendo com um som distante apenas. Agora cacos aos seus pés, ela ouvia os próprios batimentos claramente.

Era óbvio que o amava, mas quando pensou em dizer isso, não lhe pareceu suficiente.  Levantou-se e o guiou pela mão até o quarto. De princípio seu olhar revelava dúvida e até surpresa, mas ele dessa vez não fez piada e nem pergunta.

Juntos adormeceram abraçados antes das 7 da noite, e quando os filhos trouxeram pizza mais tarde, comeram com uma fome maior que a das crianças. Muitas outras pizzas comeram juntos depois, até o dia de retornarem ao Reino.

Dessa vez o Rei foi recebê-los enquanto ainda subiam a escadaria do palácio juntos. Todos em volta sorriam e o Rei lhes batia palmas.

– Sejam bem vindos, meus filhos. Não há mais ruptura, a ponte está refeita. A missão de vocês está cumprida.

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