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A História de Zé do Laço

Os seres hoje libertos da 3D costumam contar como superaram suas dores e os desafios da Roda de Sansara, como forma de nos inspirar a conseguir o mesmo.

Mas nesse processo, apesar do conhecimento adquirido sobre as Leis da Espiritualidade, perdemos ‘o brilho’, o viço da esperança pelos massacres constantes à nossa paz de espírito e equilíbrio.

Tive a honra de psicografar muitas histórias, mas para mim nenhuma mais especial do que esta, dada muitos anos depois do primeiro contato com a entidade, a primeira que sintonizei que se identificava com uma falange atuante na Umbanda.

Zé é sempre sorriso, sempre alegria, sempre solução. E sempre me dizia: “Um dia te conto minha história”.

Quando ele o fez, senti na pele o terror que só quem tem dentro de casa a fonte da inquietude conhece.

Uma coisa é a depressão causada pelo desemprego, pela falta de grana, pela solidão; outra bem diferente é ter sua paz e integridade constantemente ameaçada por violências dos mais diversos tipos. Há níveis e níveis de situações e a resiliência é um elástico, após certo nível perde sua forma; para que isso não ocorra, é preciso não perder de vista o sentido de autopreservação e não se auto-escravizar a conceitos sufocantes de subordinação ao sofrimento.

Albano lutou por si e pelos seus, e em suas buscas indagava Deus o porquê de tudo aquilo.

Se você também já desejou colocar Deus e a Vida no banco dos réus, essa história é também para você.

Boiadeiros

A História de Zé do Laço

Capítulo I

 

A História de Boiadeiro começa hoje.

Hoje é o dia eterno do tempo.

Para aquele que sofre o hoje é eterno. Ao que não dorme, a noite não passa. Ao intranquilo no espírito o suceder dos dias é corrente de água a enlouquecer o rio.

Foi num dia como esses, em que a escuridão encega a alma e a dor no corpo não se faz silente, que Albano viu o escurecer nas paragens onde os cavalos ‘baios’/selvagens se agrupavam para atravessar o reinado de Phebe. Era em meio a natureza que buscava asilo das discussões e intrigas que seus irmãos faziam, sempre indispostos a repartir, em igual pertence de valor, as terras, as roupas e até mesmo a comida que o pai lhes provia ou a mãe servia. Na casa onde a inveja faz moradia pelas contas devedoras, sempre inimiga de quem já no passado de ciúmes se movia e até hoje de qualquer atitude mais fraterna se desobriga, o caldo ainda quente esfria, o doce azeda e o salgado amarga o sabor de toda vida em família.

Mas Albano corria; daquele cenário só sua mente desfazia ao avistar as árvores, sentir o vento no rosto e a alegria das viagens percorridas por cada um dos seus cavalos, que dali por vezes um tirara, treinava, domava e fama assim fazia. “Como podia Albano, moço assim tão quieto, fazer tanta serventia, e aquilo que ninguém mais podia, domar assim tão rápido alazão, crina-larga e pônei (antepassado dele, outro nome?) sem ferir a si ou ao bicho, e ainda manter suas maiores habilidades naturais intactas, coisas que outros domadores sempre perdiam em seus plantéis.
Olhando o garanhão, as fêmeas recém-paridas, os jovens mangalargas em sua liberdade, Albano se sentia como um deles, isolado à revelia. Quisera também ser cavalo, correr para longe e nunca mais ouvir uma briga, pois que a dos cavalos pode ser bem perigosa, mas pelo menos, dá-se na dignidade do silêncio. Oponentes medem suas forças e ganha a contenda o que tiver melhor condição para provar sua maior valia. Diferente dos irmãos a disputar aquilo que caso tivessem não poderiam a contento assumir. Disto o pai sabia, e portanto evitava a divisão, mas também impedia aos filhos seguirem qualquer caminho diferente de sua paternal opção.

Liberdades cerceadas geram corações em conflito. Eternamente buscando compensação por aquilo que não foi vivido. Se o clã tomou, o clã agora deve. Bens em troca de um amor. Coração negado em troca de um favor. “Tudo pela família”, diziam.
Para Albano, essa era frase de perdição.

Assoviou e para perto de si vieram sete, dois de perto, um de longe e os quatro no costado de perto da amoreira. Marrons no pêlo e olhos luzidios. Albano sentia que com ele falavam, e aceitou o convite de cavalgar por um tempo, algumas horas que fosse, para além do horizonte, e só retornar de manhã.

O vento varreu-lhe a mente e refrescou-lhe as idéias. Até mesmo alegrou-lhe a faze um sorriso ao avistar as meninas com não mais de quatorze, tranças, passamanarias no vestido, avental e lenços, trazendo cestos com ovos ao clarear dos primeiros raios da manhã.

Albano voltava alegre, outro, quase esquecido dos percalços do jantar do entardecer anterior. Mas antes que ele se desse conta, seu animal-amigo – anima-amigo – de brusco algo percebera e relinchara, cessando o trote de supetão ao se aproximar da propriedade ainda no portão. Relutou em prosseguir, mas ao mestre obedeceu, que na entrada da choupana já estranhou a janela aberta e a vela de sebo ainda a queimar ao lado da mesa posta ao jantar.

Rapidamente Albano desceu do trote e o casebre adentrou para imediatamente sentir o chão dos seus pés se retirar. O pranto o tomou quando a mãe atirada ao chão achou, já fria, a concha de madeira para o caldo ainda na mão retinha. O pai em pé lhe fixava, encostado ao armário das louças de mogno. Antes que gritasse “Pai, o quê!?” seus olhos bateram no irmão mais novo, de bruços sobre a cadeira de madeira ainda a verter sangue pelo frio da espada que lhe abrira. Ao encaminhar-se por entre eles avistou o machado que às costas o pai tinha. Um barulho alto o sacode em meio ao pesadelo: porta da despensa bate, trancada, e a voz abafada de um dos irmãos reconhece, a clamar por ajuda. Se dirige à porta, o coração em disparado. Nem bem destranca a trava e surge o irmão à sua frente, sujo de sangue, rasgado a gritar: “Irmão, irmão! Onde estavas? Grande tragédia se abateu aqui!”
Por muito tempo depois Albano esse momento procurou esquecer. Apenas memórias de relance, de qualquer forma, eram o que lhe vinham à mente. Gefér, o irmão preso na despensa a acusar Hitor, o mais velho, de ter assassinado aos pais e ao outro irmão; ao mesmo tempo barulhos na outra sala ouviu e duvidou: “E se foste tu, e não Hitor, que essa chacina comandou, pois tu bem ficarias não só com as terras de tua partilha, como com as do mais novo e sua futura esposa Ethira, a quem seus olhos sempre fizeram grande vista?”
O cavalo lá fora relinchou, avisando do perigo diretamente ao seu coração: “Corra!”

“E se foram os dois mancomunados a exterminar a família?” Não sabia, nem saberia, pois o relinchar do cavalo foi mais forte, e o instinto do perigo a lhe demandar SALVAÇÃO lhe deixou claro um recado à mente consciente:

“Salva-te, pois que tudo está perdido! Se foi um ou outro irmão, ou ainda os dois, teus pais e o outro já foram postos ao sacrifício da ganância seja lá de quem. Corre e salva a ti, que se aqui te demoras, teu destino não será diferente também.”

E sem mais discernir palavra de irmão ou barulhos que não fossem o relincho de Oro, o anima-amigo que lhe urgia a cavalgar embora, Albano correu porta afora, se pôs à galope e só parou no país vizinho.

Fez muito bem, pois notícia tivera de ser procurado, acusado pelos dois irmãos mais velho de ser o responsável pelo assassinato dos pais e do irmão mais temporão.
Mas Albano outros caminhos tinha a percorrer que não os da prisão.

E sempre na direção do poente ia, um pouco a cada dia, em busca da sua salvação.


O 1º capítulo é contado na 3ª pessoa porque até aquele ponto eram ‘os outros’ que regiam a sua vida, e que determinavam se ele sofria ou se ele sorria.
A partir do momento em que Albano tomou uma decisão por si, baseado unicamente em seus instintos e sua conexão com a natureza, nosso personagem ganhou voz, a sua própria voz, e daqui em diante, é ele próprio quem narra o seu destino.

Pai Arruda

 


 

Capítulo II

Por três dias corri. Nem para comer parei, somente para um bem pouco dormir, pois que sentia às minhas costas o vento frio da dívida de sangue registrado por meus irmãos mas creditada a mim, em meu encalço. Se parasse, sabia, perdão não haveria, pois que todos neles, muito mais articulados que eram, acreditariam. Rumava no sentido do sol poente, talvez no inconsciente desejo de fazer o tempo retroceder, à trás andar e quem sabe minha sorte mudar.

Mudar, mudou. Mas foram muitos d’ias’, ‘semanas perdidas no tempo’ de paradas em estranhas pradarias que a mim mesmo de volta me conduziam, enquanto eu acreditava que para fora do “eu mesmo” me encaminhava, ao desdobrar em todas as minhas forças para tentar resolver os causos daqueles que se achegaram a mim. Porque ajudar os outros é bálsamo mais que bendito, no esquecimento dos problemas de quem, como eu, paz de espírito sempre buscara mas jamais antes encontrara, nem mesmo na solidão. Pois no vácuo do silêncio reverberam a dor e a falta de compaixão, afligindo num suplício eterno de tristezas as almas que buscam por seu próprio perdão.

Iniciação? Eu diria que sim.

A minha levou 9 anos, dos quais algumas paragens eu vos conto a seguir:

Naquele tempo eu me achava meio burro, bruto até, porque me comparava, na brusqueza objetiva do falar, com o diálogo franco e humorosamente elaborado dos meus irmãos mais velhos. Tímido, recuava e evitava marcar presença aonde ia, acompanhado ou não da família, mesmo quando as moças me enfeitiçavam o olhar.

No começo do exílio, deliberei: “Vou pra um lugar que melhor me ensine falar. Vou pra Grécia dos filósofos, que lá dizem que tem saber, que é coisa boa e que eu também quero ter! E além disso também passo antes pela Sicília, que disseram ser terra de mulher muito bonita. Quem sabe já não me vou até casado ter uma conversa boa com aquele tal de Platão, e ele não me pega como aluno dele e me ensina bem umas lição, que além de eu deixar de ser burro, passo a falar bonito, que é coisa que qualquer esposa há de gostar. E também se algum dia tiver condições de minha inocência provar, volto falando bonito e mostrando para esse povo que todo bronco com carinho tem seu jeito.”

Hoje em retrospecto vejo quão inocente era eu, que além de achar que Platão ainda vivia, ainda pensava que o povo, com minha “evolução” se importaria… Quem em si não se confia, sempre de todos espera aprovação e teme a zombaria. Ah, triste sina! Feliz daquele que não depende das esmolas de atenção alheia!

 

Reprodução do Livro Paralelas da Umbanda III – Boiadeiros – à venda